24.2.07




CENOTÁFIO

(túmulo vazio)
Houve uma explosão muito próxima a mim, o som não era de uma bomba ou de tiro de revolver. Um som diferente, não foi fora, mas dentro de mim. Estranho, não consigo identificar esse barulho, algo me diz que a explosão foi dentro da minha cabeça. Senti uma energia diferente, um calor rápido e um alívio proporcionado por um silêncio melodioso e uma doce leveza.

Afinal o que está acontecendo? Desembarquei no terminal rodoviário, vindo da periferia mais distante, no fundão do Parque Água Branca. Todo o sábado vou e aos domingos volto numa rotina agradável, como sempre. Tenho orgulho por dominar e ser amado por essa mulher. Amor verdadeiro ou falso? Suburbana, agrícola, mas inigualável.

Na intimidade das carnes, tudo o que ela conhece, e o que ela sabe de mim, provoca e enche o meu ego, me sinto o super-homem. Todos os dias que nos encontramos ela renova as juras de amores, sempre comprovando com atos concretos coisas que o meu intelecto nunca imagina. Não a esqueço um só momento, trago na alma o sonho doce dessa paixão aonde vou, dia e noite.

Relembrando ainda que ao subir a Rua Joaquim Nabuco extravasando confiança, andando firme e bem cadenciado, meus ombros bailavam num luxuoso salão cheio de convidados, mentalmente planejava o que poderia fazer com ela no chão do jardim, amá-la e entendê-la intensamente e dialogando na mesma língua revolucionando o nosso amor todos os sábados até o fim da vida. Ao ajustar os óculos, em minhas mãos senti o cheiro fresco de raiz exalado pelo corpo de Jupira. Fechei os olhos, viajei roçando o rosto no seu colo, lambendo o pescoço levemente arrepiado...

Explodiu!

Por um instante, o tempo de abrir e fechar os olhos eu vi um corpo caído no chão, muita gente em volta, alguém cobria o infeliz e eu, flutuando e assistindo, como numa tela de cinema mudo, num silêncio sepulcral, aquele fato. De um lado, uma caminhonete importada, de outro um defunto, atropelado. Chegaram ao local todas as polícias disponíveis; Após três horas uma ambulância recolhe o cadáver, o carro do IML não veio, está quebrado.

À distância, ao retirarem os jornais que cobriam a vítima, não a reconheci, mas era-me familiar. Aproximei-me daquele cenário mórbido, e observei a pasta com o caderno de anotações, lapiseira, a camiseta preta da sorte, a calça jeans e o sapato. O relógio arrebentado a identidade no chão, sem dúvida, são meus.

Nesta altura, tenho consciência de que sou um fantasma, agora invisível e com certeza, mais um bisbilhoteiro morto sem aviso prévio. Por instinto, não posso concordar, logo agora que a sorte me sorria. Levantei com pé esquerdo, e ainda encontrei um gato torto doidão correndo sem rumo. Sou de Escorpião e Saturno que foi rebaixado e caçado por astrofísicos intolerantes, acentuando a minha astrofobia. Com esse astral não poderia dar outra coisa. O corpo que os policiais estão resgatando é o meu, aqui neste canto sou eu, e aquilo caído no chão foi meu corpo, como amor e sexo, não misturemos. Na ambulância, embarquei na minha invisibilidade, cheio de vantagens, e fui!

Fomos todos para o IML é exigência legal a autopsia. Logo eu que nunca gostei de médico, agora nem reclamar posso. Saberei se o atendimento aqui é igual ao do pediatra da UBS, lá o ‘médico’ atende quinze crianças em quinze minutos, sem dúvida é um vagabundo. E eu aqui, peladinho com uma etiqueta preza ao dedão do pé direito onde está escrito que o individuo José Damasceno, que não é parente de ninguém, nº. 027/06 fora atropelado na Rui Barbosa às 15h.

O legista balbuciando inconformado: ”atropelado na Rui Barbosa... que retardado... deve ser um capiau que nunca veio à cidade”.
No laudo, a causa mortis anotada: “Traumatismo craniano radical”. O documento necroscópico chega às mãos do encarregado para fazer o atestado de óbito:

Atestado

▬ O Senhor José Damasceno, nº. 027/06, foi vítima de atropelamento por um veiculo de grande porte, cabine dupla importado, modelo anti-Lula que lhe causou entre tantas fraturas, um traumatismo exposto no frontal e acima do nariz, ou seja: deu de cara no rótulo da Toyota 4X4. O médico, Doutor José Antônio, ainda possesso por ter expulsado aos gritos um desavisado que reclamara a falta do camburão: “Quem mandou você votar nesse prefeito, seu animal?”. Assinando o documento, ruminava um pensamento: “Esse cara é muito burro, (atropelado na Rui Barbosa?), não agüento tanta ignorância, agora eu vou mesmo, vou mudar pra Bagdad”...

Lendo o laudo por sobre os ombros do doutor, entendi o meu barulho: foi a minha cabeça que explodiu. Agora o meu corpo aqui exposto, pelado e ridiculamente ignorado. Só faltava essa menina flertando, de olho no meu cadáver. Será que ela não tem o que fazer? Atrevida, é a reencarnação dos embalsamadores dos Faraós. Aqueles escravos faziam cada uma com a burguesada morta. A cara dela diz tudo, está mal intencionada, olha onde ela está passando a mão e encostando o rosto. Enquanto vivo essa vaca nunca me deu bola, agora quer sentir o meu cheirinho?

Ufa! Que calor... Ainda bem, apareceram os funcionários para levar o meu corpo. Cuidado meu, o chassi está todo arrebentado e vocês ficam pegando de qualquer jeito? Que é isso, devagar com isso aí, precisa jogar assim nessa caixa suja? Isso se parece mais com capacete de moto-taxista, qualquer um mete a cabeça. Tudo bem: Lá vamos nós. Essa maca está manca, e correndo feito um louco o caixão pode cair! Louco! Cuidado porra! Cuidado!

Falei, esses caras vão acabar com o que sobrou do meu corpo. Eu estava vendo que ia cair, mas esses incompetentes... Quero ver agora como é que eles vão por o corpo nesse caixote, e depois, joga-lo sobre essa maca ordinária. Olha lá, vai cair do outro lado, devia cair sobre o Baianinho Jaburu, é um relapso, esse filho da puta!

Esquisito,

Isso aqui parece instituto de beleza, com mesa de mármore, até que é bem limpo. E a minha roupa? Até quando vou ficar pelado? Aqui só tem mulher, conheço a Norinha é maquiadora. A Zabocão vem com balde, água, sabão e toalha; Agora é banho na certa, até que enfim. Maquiagem não, o que vão pensar lá no Sumaré?

O caixão é muito chique, know-how de última geração, cheio de adicionais, direção, ar, vidros e travas douradas. Quatro funcionários, sendo um bêbado, para encaixotar o gostosão na urna fúnebre. Flores, rendas e gravata; Mas... a cara? Essa cara não é minha! A testa remendada, cheia de base, pó de arroz, vai ser a maior decepção no velório, estou com cara de bicha! Quem é o dono dessa espelunca que não vê isso?

Rumamos ao velório com nota fiscal. Nem defunto pode ser transportado sem nota. O GG fica em cima, quer carimbar as cinco vias do produto, conferir o ICMS para liberar a transportadora. O motorista da Besta, temulento, alcoólicos ela e ele, pois os conheço muito bem. O coitado esteve internado em Tupã onde tomou na cabeça choques que lhe causaram grandes prejuízos, dizem que sarou, mas... Acelerou a Van e saímos finalmente, em direção ao velório. Com certeza, alguém pode estar à espera, quem sabe uma multidão, centenas de coroas, dezenas de jovenzinhas e eu com essa cara.

O camburão segue o caminho planejado desenvolvendo uma velocidade de quem perdeu a hora. Não sei para que tanta pressa se o meu corpo já morreu. Descendo a Baguaçu, Silvestre economiza, desengata e vamos de morro abaixo como enxurrada, ninguém segura. Surge em sentido contrário um caminhão tanque carregado de diesel com nafta, uma bomba com doze pneus carecas. O GG, da nota fiscal, vinha voando para interceptá-lo. Certo de dar um flagrante de combustível adulterado e prestes a alcançá-lo, a viatura do Picolé voava baixo.

Os veículos desembestados, a Besta e o tanque, cada qual de um lado da ponte, quando como mágica, aparece não se sabe de onde, uma cachorrinha vira-latas atravessando de uma calçada à outra. Havia previsão de chuva, uma tormenta com ventos fortes, e já ventava. O bom caminhoneiro para não atropelar o lindo animalzinho, desviou o caminhão para o centro da rua. Silvestre vacilante e sem reflexos, não teve escolha e foi colhido por aquele bólido desgovernado que acertou em cheio a viatura defuntosa. Os carros se enroscaram, os motoristas pularam; E vivos concordaram: Foi o vento! O GG chegando, ofegante, quer a nota: − Que nota, meu? Respondeu-lhe Silvestre sentindo na testa um galo que cocoricava.

Explodiu outra vez,

mas, não como minha cabeça, o caixão magicamente, Copperfield não faria melhor, como num circo foi serrado ao meio virou lenha fogueirosa e o meu defunto ficou mais estragado, torrado como pelego de porco, metido num aperto e esmagado que só sardinha. O teto do carro juntou-se ao assoalho. O fogo tomou conta, e com o sopro do vento as labaredas subiram, e bastaram alguns minutos para que tudo se transformasse em cinzas levadas e espalhadas por uma ventania furiosa soprando em direção ao Baguaçu. Essa morte me surpreendeu que brincadeira, foi uma peça. Sonhava morrer (luchando) num cabaret da Velha Havana (Patrimônio da Humanidade), numa noite louca cantando e bailando com minha índia Jupira, o hino soy loco por ti América: ”Mais apaixonado ainda dentro dos braços da camponesa, guerrilheira/Manequim, ai de mim, nos braços de quem me queira...”. Eu queria se possível, ser cremado após a morte e que alguém jogasse os meus restos mortais na Marina Hemingway, mas não foi possível, o vento se ocupou de encaminhá-las às águas do rio, enfim é o caminho do mar. Sou contra poluição, ao enterrar os mortos no cemitério contaminamos no subsolo o lençol freático, quanto a túmulos, é obrigar os que aqui ficam cuidar da tal ‘última morada’.

Mas, defunto mora?

Os bombeiros, após muito trabalho, puseram fim ao incêndio. O fogo acabou, apagou e agora não tem defunto nem velório. Um enterro sem defunto. Um túmulo sem morto, um cenotáfio? No cemitério, o povo olhoso, e entre estes, os ‘avisados’, o Pai-de-Santo, um Pastor e o Padre com seu breviário de página marcada pronto para me despachar: “Está na hora, portanto, do homem levantar a cabeça e se conscientizar, a morte clínica faz parte do processo integral da vida”. Ele queria dizer que basta estar vivo para passar para uma outra dimensão que é o ponto final.

O motorista acompanhado do chefe da agência funerária reuniu os piadistas e os chorões de plantão na capela do cemitério para explicar: “Não há defunto, o morto queimou, e as cinzas o vento entregou no Rio Baguaçu, mas nem tudo está perdido, sobra uma vaga no túmulo da família para uma outra eventualidade, e a nossa empresa não vai cobrar nada pelo serviço”. E eu estou feliz, primeiro por não ocupar a tal vaga que me foi oferecida naquele mausoléu de luxo e segundo, por não ter seis oportunistas em volta do meu caixão mortoso abalados pelo meu passamento, e por fim, as explosões que me tiraram do mundo, não foram dolorosas. Agora eu não sei aonde vou morar. Aguardem-me, em breve voltarei!

OUT/2006 – Ventura Picasso – 9017
BASE: Texto criado à partir da Oficina Sesc:
“Texto e Imagem: uma experiência criativa” (H. Consolaro & Paulo Brasil)

Vocabulário (neologismos) João Guimarães Rosa – Sagarana, Grande Sertão: Veredas, e de Mia Couto – Moçambicano – Estórias Abensonhadas.


12.2.07


ARAÇATUBA VAI MUDAR!

Numa pequena cidade, a base da oligarquia política alternava-se no poder entre duas famílias. Terminada as eleições desfrutavam das benesses do estado. Seis meses antes da outra eleição, a guerra era declarada. Confirmado os resultados, o candidato que perdia era contemplado com uma faixa na fachada da residência, com a seguinte mensagem:- Vende-se este imóvel, o “fulano de tal”, ex-candidato ‘vai mudar da cidade’.

Atores que participam dos eventos eleitorais, sabem que desfrutamos de uma falsa democracia. O povo, que poderia se interessar pelo assunto, acha que política é para políticos corruptos. Não aceitam esse assunto, e afirmam: - Sou apolítico! O político ‘não muito profissional’ gosta. Candidato caloteiro diz que dívida de campanha não se paga; Vereador pede impeachment do presidente; Vandálico corta placa publicitária, e com dinheiro próprio tapa três buracos nas avenidas; Empresta muleta, cadeira de rodas, fogareiro, doa dentaduras e tome cesta básica etc.

A faixa ‘Araçatuba vai mudar’, anônima, com tempero político, arrepiou a categoria. Escrever o nome no muro e qualificar de avarentos ou ‘eventos’ pode, mas anônima, nem pensar. A prefeitura conserva em seu poder, todos os siglados de PMDB a PD, comissionados e afins, pode fiscalizar quando lhe interessa, e fiscalizou; Na escada, o fiscal arrancou as tais faixas, mesmo porque, Araçatuba não tem para onde ir. Mudar para onde? Poderia aninhar-se nos buracos do Daea. Há buracos naturais, eventuais e institucionais. Buraco chapa branca!

O anônimo dono das faixas da mudança apareceu furioso e foi ter com o fiscal; coisa do diabo:
- Não é nada disso que estão pensando diz o pastor, já temos dois partidos políticos e cinco candidatos a prefeitos.
- Ah! Então pode por a faixa, não sabíamos que se tratava de cristãos.

Como todo mundo acredita em Deus, no caso um pastor que o representa, nem multa foi lavrada. Mas, e a ‘mudança’? Encher um caminhão de “trem veio” é uma coisa, ou como dizem, “partir de esta vida, e pasar a mejor, lo creemos pero, no mucho”. Mudança religiosa, mas a vida é curta, os espíritas dizem que vão e voltam e os, megalômanos, garantem que no Paraíso têm cadeira reservada à direita do Senhor. Querem fazer lá o que fizeram aqui, bajular, na situação.

Nossa vida é feita de sonhos. Em palestra da Natura no Hotel Riviera, o César Faustino perguntou de supetão: - Você sonha?
- Sonho!
-Acordado ou dormindo?
-Nos dois formatos.
-Boa resposta.

Sonhar não é coisa à toa, e se o povo pensar na geografia araçatubense e nos políticos que fazem publicidade ilegal, deixando um olho no passado e outro no gato do lado, ‘Araçatuba vai mudar’.

Ventura Picasso