2.1.12

Velhaco

Um dia eu vou dar pra você

Retornando ao flat de uma viagem demorada para sua alegria lá estava ela, como de costume à sua espera, na porta do apartamento que era exatamente em frente ao dele. O encontro ocasional, uma rotina muito aguardada e agradável para ambos, saciando um misto de saudades e de falta, a inocência do sentimento puro que existe entre eles, mesmo não sendo irmãos.

Surpreendida pela chegada do amigo e visivelmente constrangida, ruborizada cumprimentou-o com um simples aceno saindo rapidamente, fechando a porta da saleta atrás de si, dirigindo-se à área de serviço. Desta vez ele ficou sem o beijo na bochecha estalado alegre e costumeiro, levando apenas um selinho básico.

Amanheceu; Ela surge cabisbaixa, muito triste e antes do bom dia, mais uma vez, Margot ameaçou: “Um dia eu vou dar pra você”. Como sempre, disfarçadamente, ela procura os olhos de Henri, e percebe que ele, corado a encara. Trazendo um corte na testa sutilmente encoberto por alguns fios de cabelos descoloridos ou mal tingidos que já foram negros ou ruivos, e nos olhos as marcas de uma noite mal dormida. Mais uma, ela finge que nada aconteceu.

Sempre que era agredida, se por acaso ficassem marcas visíveis pelo corpo ou mesmo no rosto, a vergonha e o ódio ardendo em suas entranhas, não saia de casa e não trabalhava enquanto as marcas estivessem aparentes.

O amor é um sentimento mal explicado. Margot adora o marido. Perdoa-lhe todos os erros ou pecados. “É tudo culpa da bebida; ele, quando sóbrio, é um marido exemplar”, diz ela frequentemente.

Henri pensava: “Quem sou eu para entender os sentimentos femininos”? Ele não decifrava o sentimento entre ambos, marido e mulher de um lado, ele do outro entrando nessa história, como o terceiro elemento, a vértice do triângulo até agora imaginário. O amor passional invadiu a amizade? Estaria ele enganado quanto aos sentimentos de Margot? E se estivesse?

Porém, existem tantos mistérios nesta terra que qualquer palavra ou detalhe pode modificar a história dessas vidas. Somos imperfeitos. Lá pelas tantas, a força de uma personalidade firme, o caráter cobrando, exigindo a verdade, alguém explode de emoção e abre o jogo.

A música, Stand by Me – Playing For Change – Song Around the World, tocava a todo volume, quando ela apareceu. Seu andar, ritmado acompanhava a marcação que John Lennon nos doou. Foi assim que pela primeira vez Henri a viu: Micro saia solta sobre os quadris, cabelos alinhados, maquiada e vestindo uma camiseta branca de tecido levíssimo e quase transparente, altiva e segura chegou, e chegando se apresentou: “Margot, moro em frente”. Risonha, irreverente e sensual; Girou na ponta dos pés, e sumiu no corredor, deixando atrás de si o odor delicioso de Hugo Deep Red.

Desta vez a briga foi feia. Passado meia hora, aproximando-se de Henri, assentou ao chão do quarto, segurando a cabeça com as duas mãos, os cotovelos apoiados nos joelhos deixando parte das cochas à mostra. Em choro compulsivo, balbuciava algumas palavras entre gemidos e soluços. Para ele, naquele instante, ela estava mais linda, muito mais – talvez sentindo pena – embaraçou-se.

Na contradição de uma forte personalidade, agora fragilizada, se sente impotente frente a esse destino. Fiel ao marido, não suportava a infidelidade. Sentia-se enganada, apesar de experiente e cuidadosa em suas escolhas, por um autêntico gigolô e gritava: “Filho da puta, velhaco, que nojo”!

Procurando confortá-la, Henry afagando delicadamente seus cabelos, deixa fluir as lágrimas da amiga. Ele percebeu que algo muito sério acontecera. Sempre que chegava ela corria e jogava-se na cama e contava-lhe todas as novidades. Agora, pela primeira vez, Henri sentiu que ela estava batida, derrotada. A chuva fria decorava o cenário aumentando a aflição e o inconformismo por ser obrigada a suportar e aceitar a traição. A chegada do vizinho confidente, a salvação o desabafo.

Foi uma noite louca. Vicente chegou ao amanhecer bêbado, trazendo numa sacola sua camisa e sapatos juntamente com alguns trajes femininos. As roupas de algum travesti fediam lixo, esgoto. Questionado pela esposa respondeu com um soco fortíssimo no rosto e avançou empunhando uma faca da cozinha. Graças à sua destreza, escapou das garras maldosas do marido, sem antes ser atingida de raspão com a ponta da lâmina que correu sobre sua testa.

No dia seguinte, ao amanhecer, acordando o marido o avisou que estava a caminho da delegacia de polícia, para relatar os acontecimentos. Se você ainda estiver aqui quando eu voltar, chamo os guardas para tratar da sua valentia. Pegue o que te pertence e suma!

A delegada fez o boletim de ocorrência e recomendou que Margot, baseada nos fatos imediatos e em outras denúncias, encaminhasse o pedido de divorcio. Após intimação policial, Vicente compareceu ao distrito para prestar esclarecimentos. Confirmou tudo o que falou Margot, assinou o depoimento, apenas mais um, e se foi.

Passados cinco dias, pelo telefone, Vicente marca um encontro com Margot. Receosa, ela sugeriu que poderia encontrar-se com ele na casa de sua mãe. Ele aceitou.

Na hora marcada, o valentão, chegou mansinho na casa da sogra. Mal ajambrado, as roupas marcadas pelo uso de vários dias, deu de cara com a casa cheia de gente. Lá estavam, não só a mãe de Margot, mas os cinco irmãos, vários sobrinhos e sobrinhas, e dois tios irmãos de sua mãe.
Surpreendido pelo coletivo que o conhecia muito bem, Vicente de joelhos, pediu perdão por seus erros, segundo ele fomentado pela bebida: “Quando bebo não sei o que faço”! E entregou-se num choro infantil que emocionou Margot e a plateia presente.

Um único sentimento permeou o ambiente e em coro recitaram: “Coitado”! Acolhido pela família, Vicente volta ao lar. Todos concordaram em, sem rancores, botar uma pedra sobre o passado. Mas, a pedra estreita não cobriu o nojo...

Na delegacia, Margot se explicou à delegada, desculpando-se e dizendo que estava tudo bem e que houvera um desentendimento lamentável provocado pelo álcool. A delegada por sua vez, ainda alertou-a: “Minha querida livre-se desse marido antes que ele a mate”. A queixa foi retirada.

A semana voou e Henri retornando na madrugada de 24 de agosto, vindo de Paris, ao abrir a porta do apartamento, deixou cair uma garrafa de Moet Chandon Chill Box explodindo no chão de mármore acordando a vizinhança impiedosamente. Recolheu os cacos, e foi para o chuveiro.

Enxugando o rosto entrando no quarto depara-se com um cenário de sonho: Margot sobre a cama a postura quase verdadeira de meditação yoga, os olhos fechados, a meia luz do abajur no canto sombrio do quarto, deixou Henri estático. Uma verdadeira miragem surreal... Desta vez nua! Inteiramente nua!
− O que está fazendo? Perguntou ele.
Abrindo os olhos:
− Vim pagar a promessa...
− Que promessa mulher?
− Um dia eu vou dar pra você; Lembra?
− Sim...
− Ele me estragou, Henri; Preciso de outro homem quero me dividir!
−Vem!...

5786 – Ventura Picasso – Cia dos Blogueiros
Foto: Claudio Aun - um-brinde-ao-amor.jpg - HyperText Transfer Protocol - http://2.bp.blogspot.com/qajp3kZkNz0/TeZHiZRgWI/AAAAAAAAAG8/P8TZ0fPfDEA/s1600/um-brinde-ao-amor.jpg

8 comentários:

Unknown disse...

Putz...adorei!Sorte de Margot, sorte de Henri. O final, sorte total. Será que Henri foi? rsrs Idiota se não tiver ido, promessa é promessa.

Célia disse...

Em "meditação surreal" fiquei ao ler seu conto! Voei com o Chico:"Mulheres de Atenas...Mirem-se no exemplo / Daquelas mulheres de Atenas..."

Rita Lavoyer disse...

Nooooooosssssaaaaa!
Desbancando Nelson Rodrigues, dando final feliz pra tonta?!

Pensei mesmo que ela fosse morrer esfaqueada, que o sangue fosse correr por essa tela branca, e....?

Coitado do Henri, vai ficar com a coisa estragada?

Que final mais cruel foi criar para esta linda história.

Então vamos ao que Freud não explica:
Ela só aceitou o machão de volta para traí-lo, como se traição fosse uma vingança? Hum kkk

se ela não tivesse aceitado o marido de volta, ficar como Henri teria algum prazer?

Vamos para os depoisss....

Ela termina o serviço lá no vizinho, chega em casa e encontra o Vicente.

1º- se ela não contar pra ele que ela se deitou com o Henri, ela não terá atingido totalmete o orgasmo.

2º- se ela contar para o Vicente que ela o traiu com o Henri, ela vai levar uma boa surra do machão.
Não vai poder dar queixa na delegacia, UMA PORQUE ELA JÁ TINHA RETIRADO A PRIMEIRA QUEIXA, OUTRA porque o Vicente estava no seu 'direito' de lavar a honra.

Essa Margot é de amargar.
Ela quer o Vicente batendo nela, para ter argumentos para traí-lo.

Conclusão: Todos precisam de um hálib quando o livre arbítrio não não é bem resolvido e praticado.

Mande o Freud enviar o meu cheque porque eu não estou atendendo consulta de graça.

E você, Picasso, faça o favor de não descambar pelas vertentes do negócio, heim!

Te contar, tá atrevido o cara.

Viva o Vicente, o personagem mais importante da história, o suporte e solução das questões aqui apresentadas.

Parabéns Picasso, gostei muito.

Será que eu entendi??

Ventura Picasso disse...

Rita:
Eu não mato as minhas personagens, em mulher "não bato nem com uma flor".
Mas, Freud tem uma tese interessante: Mulher que gosta de um homem, se não gosta de apanhar, não é normal. Porém, se dorme com um concorrente, aí está o x da questão; Ela jamais transará com o anterior - o Vicente ficou na mão -o coro "coitado" representa uma execução física, Margot matou Vicente...
Vc acha o final feliz?

Rita Lavoyer disse...

Claro que você mata personagem. Já li sobre o Hotdogson e gostei muito também. Poderia publicá-lo em e-book. Será o maior sucesso, tenho certeza.

Não, Picasso! A Margot não o matou porque ela precisa dele vivinho para vê-la fazendo e continuar fazendo o que ela se propôs a fazer.
E vou te falar, ela não ficará somente com o Henri, não!

Enquanto o Vicente estiver vendo-a sentindo prazer ela o trairá sempre. Também leio Freud, Jung, Nietzsche. Do círculo de Jena sei até as maracutaias.

Esta sua obra é assunto pra mais de mil reencarnações, ainda assim não se resolverão os personagens da trama.

Tá falado, escritor das Facetas Humanas.


Grande abraço
Rita

Ventura Picasso disse...

Eu espero que ela fique morando, vivendo do bem bom e da mesa nas custas do Vicente, mas em cama separada.
Cama perfumada, só com Henry. Se ele continuar viajando com intervalos de tempo acima das possibilidades de espera da Margot, pode ser que os turistas...

Ventura Picasso disse...

Célia,
Feliz Ano Novo!
Gosto muito da sua opinião. Você é uma observadora fantástica. Eu não lembrei. Mulheres de Atenas, tudo a ver com o tema.
Forte abraço

Ventura Picasso disse...

Olá Maria Tereza,
Certas oportunidades aparecem uma única vez. O convite era irresistível, no lugar certo, na hora certa, com as pessoas certas...
Certamente foram!
Hahahahaha