13.9.12

Cabeça de Burro

A fila andou. As compras começaram a passar no scanner. A moça do caixa perguntou ao menino dos pacotes:
- Hugo, você tirou o título de eleitor?
- Tirei quando completei dezesseis anos, Angelina. Vou votar pela primeira vez.
- Em quem você vai votar?
- Num amigo do meu pai. Cara legal me deu cinquenta reais. Papai falou que ele é muito honesto.
- Porra meu, você é que é sortudo. No primeiro voto já leva cinquenta paus!

Dona Matilda, professora de história contemporânea, coroa enxuta meteu o bedelho:
- Meu filho você tem a coragem de afirmar que esse candidato asqueroso presta? Menino fique sabendo, que o teu voto foi estuprado por esse tarado! Imagine já na primeira vez, no primeiro voto da vida, você encontra esse demônio traficante de voto! Você vai viciar, sai dessa.
Ah, dona Matilda, sabe como é né? Cada um fala uma coisa.
- Você assistiu à aula que eu expliquei à classe que o Título de Eleitor não pertence ao portador, mas a toda sociedade? Você não entendeu nada do que falei?
- Faltam muito dias para as eleições professora, quem sabe até lá eu descubra outra resposta para esse problema. Não sei o que meu pai pode pensar, ele vendeu o meu voto.
- Hugo, você é bom aluno, devolva o dinheiro para esse ordinário e já diz na cara do cara que não vota mais nele nem na coligação dele!

O papo despertou Angelina, interessada no candidato fajuto do Hugo, e pensava:
- Pô meu! Por cinquenta pratas, rolava na cama com ele, numa boa, até acabar a contagem dos votos do segundo turno. Vou procurar esse Cabeça de Burro, se ele amolecer arranco uma grana desse otário.

Hugo, atendendo a todas as clientes do mercado, levava suas mercadorias até os automóveis ,  no pátio do estacionamento. Matilda recolhendo suas compras perguntou:
- A que horas você deixa o trabalho?
- Em quinze minutos.
- Quer uma carona?
- Quero sim. Justamente hoje deixei a magrela em casa. O pneu furou.

Na hora combinada, Matilda estava à espera de Hugo.
- Onde você mora?
- Moro na Paineira.

Mesmo de automóvel não é tão perto. Começava a escurecer e o trânsito a cada momento mais pesado. Centenas de motos e bicicletas embaralhados poluíam as ruas em alta velocidade. Por fim chegaram. Uma casa bem cuidada. O imóvel ocupa uma área ao fundo do terreno.  À frente ajardinada e sombreada por várias Acácias. Um caminho de pedras roliças leva do portão à garagem camuflada por camadas de Hera bem aparadas.  Agora as luzes da rua já estão acesas.

- Chegamos professora.
- Pensa bem no que falamos menino! O teu voto é da comunidade, não é teu! Ninguém tem o direito de vendê-lo, viu?
- Vamos entrar dona Matilda.
- Hoje não posso. Tenho um compromisso muito importante no Conselho de Docentes. Deixemos para outro dia, tá bom?
- Não faça isso professora. É a primeira vez que a senhora vem até minha casa e não quer entrar? A casa não é feia por dentro. É aconchegante. Eu tenho suco de laranja, refrigerantes e até cerveja belga.
- Presta atenção Hugo; Pra você não pensar que estou desfazendo de sua casa vou entrar, mas fico apenas por quinze minutos. Tá?

Abrindo o portão da residência, Hugo permitiu a entrada do automóvel.  Caminhando em direção à casa, Matilda ficou admirada com o trato do canteiro de flores coloridas. Entraram; A casa vazia chamou a atenção da mulher visitante.
- Hugo não tem ninguém em casa?
- Não dona Matilda, ninguém.
- Sua mãe está trabalhando?
- Não. Não tenho mãe.
- Sinto muito. E seu pai?
- Papai está em Brasília. É assessor no Itamaraty.
- Você vive sozinho nesta casa?
- Mais ou menos. A vizinha cuida de mim desde que nasci, cuida da casa, faz comida, lava roupa, e atura minhas mágoas. Não conheci mamãe. O que a senhora quer beber?
- Uma Stella Artois bem gelada, uma só!  Estou dirigindo e sabe bem como é. Acontecendo alguma coisa, o policial já chega apontando o bafômetro.  Você tem razão, a casa é acolhedora. Muito arejada e decorada com amor. Linda! Você e seu pai devem ser felizes vivendo aqui.

- Venha professora vou lhe mostrar a casa.

Um lugar cheio de lembranças. Fotos de sua mãe enfeitam os móveis e as paredes. No jardim de inverno as orquídeas ocupam todos os espaços. No corredor de mármore branco, a penumbra abriga os quartos justapostos.

- Dona Matilda este é o meu quarto.

Surpreendeu-se com a fina decoração da suíte. Inacreditavelmente organizado. Nunca vi um quarto de menino tão arrumado. Parabéns.

- Minha querida Josefina, a vizinha, cuida de tudo todos os dias. Adoro essa mulher. Amamentou-me por dois anos. Dividíamos seu leite, um pouco para Tita, um pouco pra mim. Vez que outra me enrosco agarrado em seu colo. Ela costuma dizer, brincando, que tenho complexo de Édipo crônico.

Matilda começa a perceber que Hugo é um garoto carinhoso que valoriza as pessoas de seu habitat.
- A senhora tem medo do escuro?
- Não.
- Eu tenho uma mania esquisita. Não sei como aprendi nem por quê.
- O que é?
- Quando me sinto sozinho, triste, pra baixo na fossa apago as luzes e fico no escuro, pensando nas outras pessoas com suas dificuldades e problemas, sozinhas também, até dormir. Minha vida parece triste para os outros, mas no geral sou muito feliz. Posso apagar a luz?
- Você não está sozinho, moço.
- Mas, estou feliz, posso?
- Pode.

Passava das sete horas, Hugo preparara o café para Matilda. Naquele dia não houve aula de história no colégio, e no supermercado faltava um empacotador, somente Angelina notou a falta.

Preguiçosamente, o sol aquecendo e iluminando o ambiente, o amanhecer provocando a algazarra dos pássaros, o riso de Hugo servindo o desjejum, observando o saboroso riso da mestra, ao acordar, que já não sabia se era Matilda ou Jocasta.

4626 – Ventura Picasso – Cia dos Blogueiros
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