Tomo a inteira liberdade de repassar e oferecer este magnifico texto de Saul Leblon aos meus amigos e companheiros, especialmente à Célia Rangel e a Rafatóth, meu neto.
Uma praça
no centro de São Paulo reuniu neste último sábado alguns elementos daquilo que
talvez seja preciso buscar para devolver sentido à participação política, não
só neste final da campanha, mas também depois dela – seja qual for o resultado
da urna.
Algumas centenas de pessoas, representantes do PT e do PSOL, lideranças dos
movimentos GLBT, cantores de rock e funqueiros da periferia, quilombolas,
coletivos de jovens, lideranças estudantis, lideranças trabalhadoras e de
organizações de bairros e uma filósofa.
Tão ecumênico quanto o formato, o repertório de difícil enquadramento em
categorias convencionais teve momentos de comício, show, conversa, festa e
aula.
Um pouco de cada coisa.
E tudo harmonizado pela dimensão humana resultante da dissolução formal entre
palco e plateia.
Pense na subversão representada pelo renascimento dos blocos de bairro, à
margem dos desfiles de carnaval capturados pelas redes de televisão e apartados
da rua por grades & grana.
Foi um pouco essa ruptura que aflorou no encontro realizado no Largo do
Arouche, no centro de São Paulo.
Nem tudo são flores.
A tarde de sol contrastava com as sombrias notícias emitidas pela ‘onda’ que
desde 5 de outubro vaticina a vitória incontornável do conservadorismo nas
eleições presidenciais do próximo dia 26.
Longe da prostração que abate espíritos isolados, pautados pela emissão
conservadora, o clima ali era de um renascimento na esperança de que algo pode ser feito, deve ser feito e será
feito. E que o horizonte dessa resposta depende de decisões que competem às
forças progressistas tomar.
A presença solidária e assertiva de
lideranças do PSOL, que vieram manifestar o apoio à Dilma no segundo turno,
sugeria exatamente o oposto do funeral sorvido com precoce gula pelas elites
endinheiradas e seu dispositivo midiático.
Coube ao deputado federal reeleito, Jean Wyllys, do PSOL, tornar claro o
sentido de resistência que passa aglutinar o campo progressista de agora em
diante – seja qual for o desfecho de outubro.
“Não vou negar o óbvio”, começou
dizendo quase como se conversasse numa roda de amigos. “A vida dos brasileiros melhorou nos últimos anos. Digo por
experiência familiar própria de minha gente pobre, em Alagoinha, no interior da
Bahia. Mas também pelo que vi em debate recente na Universidade Federal da
Bahia, onde estudei. O que antes era
uma escola da elite branca, hoje é uma instituição com marcante presença negra
e de jovens oriundos do povo", testemunhou em intervenção
coloquial, mas carregada de prontidão e urgência militante, que convergiu para
um chamamento: "Nós sabemos o
perigo que significaria um alinhamento conservador entre um Executivo dominado
pelo PSDB e um Congresso de maciça presença de forças regressivas, como esse
que foi eleito em 2014. Por isso não poderia lavar as minhas mãos como Pilatos.
Meu voto é Dilma, 13".
Jean Wyllys reiterou o apoio idêntico
de Ivan Valente, Marcelo Freixo e outros integrantes eleitos do PSOL,
ademais de membros do partido, como Toddy e Bill, não eleitos, mas portadores
de expressiva votação na periferia de SP.
Coube a eles reforçar o espírito da frente de esquerda, sem rodeios, nem
concessões.
‘Não foi fácil vir aqui’, ponderou Bill, ‘não estamos dizendo que aceitamos as omissões do governo do PT. O que nós
estamos dizendo é que queremos continuar fazendo oposição pela esquerda, e não
ver o Brasil mergulhado no retrocesso com Aécio Neves. Por isso, dia 26 é 13’.
Cantores, presidentes de entidades estudantis, membros de cooperativas das
periferias, ademais do ex-ministro Padilha, falaram no mesmo diapasão.
Eduardo Suplicy, candidato ao Senado derrotado pelo eterno delfim do
conservadorismo, José Serra, conversou, cantou e emocionou.
Vencedores e vencidos nas urnas. Progressistas de todos os tons de vermelho.
Libertários de todos os gêneros.
Militantes de cabeças brancas coroadas por bandeiras vermelhas. Gente pobre da
periferia. Famílias assalariadas, ao lado de verdadeiros mostruários de
piercing e tatuagens. Uma arca solidária, pluralista, amistosa e desassombrada.
Uma espécie de regresso a um lar que nunca existiu, mas capaz de transmitir a
sensação difusa de que esse é o lugar acolhedor para se lutar por novas formas
de viver e de produzir no século XXI.
A tentativa de explicitar isso, desvendar esse impulso e dotá-lo da musculatura
histórica necessária aos desafios dos dias que correm e dos anos que rugem logo
adiante viria em seguida.
O bloco camarada do Largo do Arouche cessou a algaravia para a necessária
compreensão desse futuro.
Teve início, então, uma aula da
professora e filosofa da USP, Marilena Chauí, intelectual que há muito enxergou
nesse tipo de Ágora um espaço
para devolver sentido à política e à militância, em meio à crise
dissolvente do neoliberalismo e da esquerda que cedeu a ele seus anéis e os
dedos, e agora tem dificuldade para montar o cavalo da história que passa a sua
frente.
Chauí praticamente não fala mais ao dispositivo midiático conservador.
Mas não se furta de comparecer às redes, às ruas e aos sindicatos, sinalizando
um novo engajamento intelectual e militante.
Que isso tudo ocorra a 15 dias das urnas do segundo turno de 2014, quando a
‘onda conservadora’ se autoproclama vencedora por ‘esmagamento’ do adversário,
não deixa de ser ao mesmo tempo prenhe de tensão e de possibilidades.
Como, aliás, é a visão da democracia que a filósofa começa a destrinchar agora
no meio da rua para um ajuntamento atento que se busca e se decifra nas suas
palavras.
A democracia é um velho tema de Chauí.
Não qualquer democracia. Aquela da ruptura, cuja construção se confunde com o
fortalecimento dos trabalhadores.
A dos que entendem o socialismo como a
democracia levada às últimas consequências.
Parece lógico, mas não é consensual.
Há quem enxergue nessa ênfase a dissolução das determinações econômicas que em
última instância condicionariam a superação da lógica capitalista.
A polêmica tem sua raiz em um texto apresentado por Marilena Chauí em reunião
da CLACSO, realizada na Costa Rica, em 1978, ‘A questão democrática’, depois
editada em coletâneas da autora nos anos 80.
A abertura política e a criação de um novo partido de esquerda, diverso da
concepção que originara o socialismo realmente existente, pautava os marcadores
da luta progressista brasileira naquele momento.
O entendimento de que a luta democrática pavimentaria a transição para o
socialismo condicionaria as características de berço do PT.
Aos que viam na ênfase democrática o abandono do marxismo, contrapunha-se a
bandeira de um socialismo livre do autoritarismo e da degeneração recorrente
nas experiências em dissolução no mundo.
Antes de significar um abandono de princípios a incorporação da democracia como
uma fissura de direitos, que promete mais do que o mercado está disposto a
conceder, seria o catalisador da luta por uma sociedade de todos,
intrinsecamente antagônica à supremacia do capitalismo financeiro.
Ninguém poderia imaginar que duas décadas depois a sigla a qual esse debate se
entrelaçara seria governo no Brasil. E nele permaneceria até esse segundo turno
extremado de 2014, quando o risco real de uma derrota e a determinação de
evitá-la faria da praça do Arouche, em São Paulo, o locus da retomada
daquele debate, entrelaçado agora à experiência de uma década no poder.
Chauí dissipa as dúvidas do passado logo nas primeiras frases, ao dar à
democracia a sua definição radicalmente oposta à lógica do capitalismo brasileiro.
Democracia verdadeira, ensina a
professora, é indissociável da
radicalização dos direitos sociais.
Por direitos, entenda-se, a provisão
pública, suficiente, regular, gratuita e de qualidade daquilo que é essencial à
universalização da cidadania.
A contraposição a isso está cristalizada no projeto conservador que hoje se
declara antecipadamente vencedor nas urnas de outubro.
A voz da filósofa soa mais alto na praça, quando anuncia que vai exemplificar o antagonismo entre esse
entendimento da democracia e o projeto personificado em Aécio Neves.
Lê então um trecho de manifesto de
apoio ao ex-governador mineiro, recém lançado por intelectuais tucanos de alta
cepa e egressos da candidatura Marina: ‘queremos que as pessoas realmente se emancipem da ineficiência e das
distorções dos serviços públicos’, escande cada palavra na leitura.
Chauí liga então a metralhadora giratória para evidenciar a lógica por trás da frase.
O que está subjacente a essa pomposa
‘emancipação da ineficiência e das distorções dos ‘serviços oferecidos pelo
Estado?’ - pergunta a voz na praça.
Está subjacente que o que se chama de
‘serviços’ são direitos; e que esses direitos serão sonegados, explica.
A filósofa emoldura então as
consequências do projeto subjacente aqui e em todo o planeta.
Quais?
As da mercantilização dos direitos, transformados em serviços, adquiridos a
mercado.
‘Isso’, proclama Chauí em assertiva que unifica e eletriza a praça dos cabeças
brancas, dos piercings, das tatuagens, da gente da UNE, do Levante da
Juventude, das lideranças do PT, dos representantes de trabalhadores, das
cooperativas, dos movimentos GLBT, dos quilombolas...
‘Isso é matar o coração da democracia’,
fuzila sob aplausos.
‘Isso’, repisam suas palavras ainda flutuando no entusiasmo coletivo, ‘é desincumbir o Estado dos direitos; isso é o
projeto neoliberal; isso é o que vai se dar se o senhor Aécio tomar o poder’.
Por trás da frase ‘tão pomposa do manifesto’, emenda a professora, está a crítica de Armínio Fraga ao salário
mínimo; está o ensaio de extinção da CLT no Congresso comandado por Aécio Neves
no governo FHC; está a venda da Vale e demais estatais a preço vil.
Assim como por trás do PT ‘corrupto’
estão as setenta CPIs contra o governo do PSDB barradas em São Paulo; está o
mensalão iniciado sugestivamente pelo PSDB mineiro de Aécio; está a lambança no
metrô de São Paulo e o aeroporto feito com dinheiro público, na fazendo do tio
de Aécio.
Então, por que o aluvião conservador
encontrou receptividade social?
Agora Chauí já não trata apenas do que chamou inicialmente de ‘a nossa tarefa
nos próximos 15 dias’. Fala dos próximos anos. Fala da agenda progressista para
o futuro. Dentro ou fora do governo.
‘A base aliada do tucanato é a mídia’,
pondera curto e grosso.
Esse emissor diuturno ceva o ódio
fascista que agora se arvora em ‘onda’. A tal ponto, adverte a filósofa, ‘que se alguém espancar uma pessoa na
rua e disser que é corrupto, será aplaudido’.
Um jornalismo autoexplicativo na sua
manipulação da realidade é a usina que choca o ovo da serpente.
Mas não só.
A presença da intelectual na praça, falando a um grupo pequeno, sem palanque ,
sem ritual, sem superprodução, sem jargão, é uma crítica implícita a uma forma
de fazer política que contaminou a própria esquerda , refletindo o entendimento
singelo do que se passa nessa mutação histórica chamada colapso da ordem
neoliberal.
Chauí execra o termo ‘nova classe
média’ adotado pelo PT para denominar os quase 60 milhões de brasileiros
alçados ao consumo e à cidadania nos últimos anos.
As intrínsecas consequências políticas e programáticas do termo incomodam a professora conhecida por não economizar
munição contra a classe média paulista. ‘Arrogante fascista e ignorante’,
foi assim que a classificou em um evento comemorativo dos dez anos de governos
do PT, em maio de 2013.
‘Não surgiu uma nova classe média no
Brasil nos últimos anos’, corrige na aula debaixo da sombra de árvores
centenárias do Largo do Arouche, entre elas um imponente chichá (Sterculia chicha), talvez a árvore mais altas de São Paulo.
Solitário remanescente de um passado rural, quando o largo era a chácara do
general José Toledo de Arouche.
Sob o testemunho desse gigante silencioso, a filósofa conceitua o presente e os
desafios que emergem um século e meio depois que a majestosa Sapopemba enraizou
por ali.
‘O que surgiu agora foi uma nova classe
trabalhadora, sem a tradição histórica da classe trabalhadora’, adverte.
Um chichá social, sem as sapopembas, as raízes longas e vigorosas que sustenta
o gigante vegetal ao lado.
Isso muda tudo.
‘É uma classe trabalhadora retalhada
pelas novas condições do trabalho na era do neoliberalismo’, explica
Chauí.
Um agrupamento que foi e é coagido a
entender a sua inserção no mundo como uma relação unilateral com a gôndola do supermercado
e o limite do cartão de crédito.
Está subentendido na aula da praça e todos ali entendem: o nó górdio dos dias que correm é a rala contrapartida de organização
coletiva e discernimento histórico desse novo protagonista da luta pelo
desenvolvimento brasileiro.
Como avançar mais se o sujeito do
processo permanece alheio às raízes do conflito que determinam o seu destino?
‘Não nos faltam obras (para mostrar);
falta-nos política. Nós ficamos economicistas. Precisamos definir o campo de classe dessa disputa’, disse Lula
durante a primeira arrancada da direita nestas eleições, quando Marina ensaiava
ser o Aécio, e Aécio era a Marina.
Durante um período longo demais, muitos dentro do governo e do PT acharam que
essa era uma ‘não questão’.
Que tudo se resolveria no piloto automático dos avanços incrementais no
consumo, que se propagariam mecanicamente na correlação de forças da sociedade,
fechando-se um circulo progressista virtuoso.
Que uma frente eleitoral de direita,
explícita no seu ódio ao PT e aos segmentos populares, tenha empalmado
inclusive setores da nova classe trabalhadora, contradiz o bastante essa
concepção para repor os termos da discussão sobre democracia, capitalismo e
socialismo do início dos anos 80.
Agora com os limites do jogo ainda mais estreitos.
O que está em curso nestas eleições alerta para o reduzido grau de tolerância conservadora com o projeto de construção de
uma democracia social no Brasil.
O golpismo em curso evidencia que para
afrontar esses limites é crucial saber onde se pretende chegar. Mas, sobretudo, providenciar os instrumentos
organizativos necessários à sustentação do percurso.
O respeito ao jogo institucional e o compromisso com a construção de uma
democracia social que o ultrapassa é um conflito endógeno ao PT.
De certa forma, um conflito inscrito no DNA da luta própria luta pelo
desenvolvimento.
A determinação política desse processo ficou clara neste pleito resgatando a
crítica ao economicismo esboçada por Chauí há mais de trinta anos.
Em resumo, não se pode mais atribuir à
economia aquilo que compete à correlação de forças decidir: a repactuação de um
novo ciclo de investimento com a distribuição da riqueza é indissociável de um
avanço da democracia participativa no país.
O resto é arrocho.
Entre os requisitos incontornáveis para
que não seja arrocho inclui-se a volta da política às ruas. Não apenas na crise; não apenas em eventos
esporádicos da agenda eleitoral.
A democracia, diz o historiador
italiano, Luciano Canfora, não consiste
no governo da maioria simplesmente por dar à contagem dos votos a sua
representação política.
Ela o será na medida em que exista um
Estado social diante do qual quem não detém a riqueza na sociedade, ainda
assim, tem peso efetivo na política e instrumentos para exercê-lo.
É isso que faz da democracia social uma construção política que, sem expropriar
previamente a riqueza, assume como imperativo colocá-la a serviço da finalidade
social do desenvolvimento.
É a essência do conflito ao qual o PT, fundiu o seu destino.
‘Direitos sociais, não serviços
vendidos a mercado’, reverbera a voz de Chauí no Largo do Arouche.
Até onde essa contradição poderá evoluir nos marcos de um sistema produtor de
mercadoria não é um problema meramente
teórico, mas de engajamento, de práxis.
É isso que a presença da filósofa ilustre está dizendo, cercada de animada
receptividade na festa ecumênica da política com a praça.
É uma subversão das formas de fazer política atualmente no próprio campo
progressista.
Se isso estiver certo, a lógica dos blocos de bairro vai invadir os partidos e
as praças crescentemente nos próximos anos.
E a voz de filósofos, economistas, historiadores , artistas, cientistas,
lideranças sociais, dirigentes sindicais, jornalistas e, claro, também a dos
políticos, passará a disputar com as árvores seculares a atenção de quem passa
por ali. Com a mesma aceitação, espera-se, das animadas charangas que puxam os
cordões livres nos carnavais do Brasil. Evoé.